Publicado em 21/08/2024
Desde a antiguidade, sabe-se que um acordo é para ser cumprido. Se há um pacto, com concessões mútuas, ele deve ser observado, ainda que seja feito com o inimigo. Um acordo existe, portanto, para encerrar conflitos.
Mas, e quando o representante do poder público elabora o acordo, faz exigências, cria critérios para definir quem pode ou não pagar (o “grau de recuperabilidade” da dívida negociada) e, embora faça algumas concessões (descontos), aceita celebrar o trato — pois considera cumpridas suas exigências —, mas, misteriosamente, tempos depois, decide não o cumprir? Ou quer impor condições inexistentes no momento do pacto?
Diversos contribuintes têm aderido em massa às chamadas transações tributárias, em âmbito federal e estadual. Nem sempre com os mesmos objetivos, mas pode-se afirmar que a maioria tem um objetivo comum: tentar pôr fim às dívidas antes impagáveis, buscando a regularidade fiscal.
Em muitos casos, as dívidas tributárias negociadas significam para o contribuinte um passivo com potencial de simplesmente acabar com qualquer possibilidade futura de permanecer nos negócios. Nessas relações tributárias, há sempre uma parte mais frágil. E sabemos quem não é. De todo modo, a confiança e a boa-fé objetiva não poderiam ser deixadas de lado.
No entanto, diferentemente do mundo colorido idealizado pelos entusiastas dos “métodos alternativos de solução de conflitos”, o que se tem visto é uma atitude bastante questionável dos fiscos, que, surpreendentemente, têm desfeito acordos anteriormente firmados e estabelecido exigências inesperadas.
Desde a oferta de garantias por empresas em recuperação judicial (quando a lei as desobriga), como a imposição de apresentação de laudos de avaliação de imóvel realizado por engenheiro ou arquiteto, bem como a cobrança de honorários adicionais (de sucumbência) mesmo que o acordo inicialmente já contemplasse honorários, são alguns exemplos.
Tais posturas, evidentemente, afastam os contribuintes da ideia de desjudicialização. A máxima de que “mais vale um mau acordo que uma boa demanda” ganha contornos sarcásticos, pois são criadas dificuldades excessivas e, muitas vezes, intransponíveis, dobrando os custos em relação aos benefícios das soluções buscadas.
Não se pacifica o conflito; ao contrário, dá-se cada vez mais motivos para desconfiança. Por óbvio, o maior receio é da insegurança jurídica. A radical alteração de expectativas, decorrente do impacto com condições imprevistas, afeta imediatamente a dinâmica da empresa e seus negócios. Além de tudo, se estimula novos contenciosos.
Além de obedecer aos princípios da impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, a administração pública não pode extrapolar suas atribuições previstas em lei. Isso inclui não romper com a confiança e a boa-fé objetiva, estipulando indevidamente condições e obstáculos ao cumprimento de um acordo firmado.
Jimir Doniak Junior explorou bem esta problemática em artigo de opinião recente, na Revista Conjur, onde destacou que:
“Nesses casos, a postura da administração fiscal destoa da boa-fé objetiva. Em lugar de colaborar/cooperar com o contribuinte (ou seja, laborar junto, operar junto) (…), é quase tangível a intuição de que os contribuintes podem estar entrando em uma espécie de armadilha, em que a promessa de benefício é somente um falso atrativo, seguida de arrependimento.” 1
Não por outra razão, recentemente, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça começou a julgar o caso (REsp 2.032.814) onde se definirá se o contribuinte que desiste ou renuncia a uma ação judicial para aderir ao parcelamento fiscal instituído pela Lei 13.988/2020 deve pagar honorários de sucumbência. O relator do recurso, o ministro Gurgel de Faria, fez o alerta:
“As partes vão, entram em acordo no âmbito do Direito material e ficam aqui discutindo o acessório. É incrível que isso venha ainda a acontecer, porque é lógico que isso deveria estar abrangido no âmbito da transação.”
E depois arrematou:
“Haver uma transação para depois a gente ter de decidir se tem honorários ou não, aí a gente continua a não caminhar para frente no que diz respeito ao sistema multiportas envolvendo acordos.”
Por isso tudo, antes de firmar qualquer acordo, além da certeza de seu cumprimento, é bom considerar se o caso realmente não valerá uma boa demanda.
Autor: Pedro Ribeiro de Paula Souza – Sócio
- DONIAK JR., Jimir. Programa ‘Confia’ da Receita: boa-fé e confiança na tributação. Consultor Jurídico. 29 de jul. de 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jul-29/boa-fe-e-confianca-na-tributacao/. Acesso em ago-2024. ↩︎